quarta-feira, 21 de julho de 2010

Delírio


Uma súbita calma. Daquela que faz amolecer o pescoço até que a cabeça caia. O silêncio completo do apartamento vazio acaricia o peito. Alivia. E o universo ao redor, tão vago, lhe parece não ser nada. Não tem fome, não tem pressa, não tem raiva, não tem tempo.

Em meio ao nada, o peito acariciado o aliviava. E aos poucos em anjo se transformava. As asas em suas costas já podiam ser vistas de longe. Como pesam! Não se parecem com qualquer asa que já se tenha visto. São de má qualidade, deformadas. Asas deformadas e gigantes de um anjo vulgar. Que lhe dói a ossatura de tanto que pesa.
De tanto que pesa o par de asas do anjo.
De tanto que pesam as asas de pedra.

De tanto que pesam as asas de pedra do anjo.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Tem sido bom, gostaria de dizer.

Do alto do 12º andar, na sala estrategicamente decorada em tons de marrom, silêncio. Quebrado apenas pelo farfalhar da cauda do cachorro, que espreguiça toda sua carência e apóia a cabeça no meu pé. A “folha” em branco na tela do computador já me desafiou mais do que nunca. Mas talvez agora que todos foram dormir e os amigos desistiram de chacoalhar a minha tela pedindo atenção, talvez agora, que o silêncio da sala e o cachorro carente são os únicos a me fazer companhia, eu consiga acalmar a percussão acelerada que existe dentro de mim, abafar esse eterno samba enredo que não se cala, e escrever um conto qualquer.

Acontece que tem momentos que escrever se torna confessional. E têm aquelas palavras que eu sempre juro nunca soltar assim como qualquer coisa. Mas que estão estampadas na minha cara. Não vê? Deixo na cara, nas minhas coisas, deixo meu cheiro, meu sorriso, meu jeito desajeitado, meus gestos e minhas guimbas de cigarro. Deixo tudo isso, e acaba parecendo que fiz questão de largar a vergonha escondida no armário. Mas eu juro que não foi proposital. E não foi. Proposital mesmo é o tempo que estou deixando ela por lá. Porque com a vergonha na cara fica difícil lidar com essa falta de controle que resolveu me tomar. Dá um pouco de medo. Não por me faltar controle. Mas por tê-lo perdido. Se é que um dia eu tive algum controle sobre isso. Acho mesmo que não. Afinal, eu não cheguei penteada, bonitinha, muito menos quieta. Não cruzei as pernas,não pensei no que falar, não alisei o cabelo e minha completa falta de jeito com tudo e meu cair pela rua sujando os joelhos estavam longe de serem charmosos.

Mas quer saber?! Nunca dei muita importância pra essas coisas. Mesmo que me falassem pra usar mais o racional. Racional porra nenhuma. Racional demais é pra quem tem espaço oco por dentro. E dentro de mim, eu guardo uma enorme percussão desenfreada, tocando um samba eterno, um barulho profundo, que não se cala. Que não me cala. Um samba enredo completamente irracional que te diz venha e eu te prometo amor eterno por toda essa noite, além de pés quentes e um chá pra melhorar a tosse. Venha, descasque seu rosário e questione minha moral, mas depois se afunda nesse edredom comigo pra que ninguém mais veja que no fundo você bem que me adora e que eu sou louca. Pra que ninguém mais veja que você bem que me adora (porque) eu sou louca. Um samba enredo irracional. Que de tão louco até falha na malícia. Mas e daí?! Viver é duro, mas no fundo, é uma delícia.

terça-feira, 6 de julho de 2010

O que escrevo

Não é tristeza querido, e talvez nem felicidade.
É todo e qualquer sentimento que me transborde em arte
Sacramentado em letras catadas como se fossem pedras
E em palavras lançadas como quem atira copos
Por entre as dobras que mapeiam nossos corpos
Porque enquanto vivo, eu penso
Mas quando escrevo, apenas sinto
Me sinto transbordar em pistas
Em linhas
Em farelos de João e Maria
Deixo que a vida vá além dos meus braços
Além dos fatos de fato e daqueles criados
Como auto-ficção
Não é tristeza querido, nem angústia ou alegria
É a força criativa que me traça, me compõe
E que eu não posso mudar
Assim, quem quiser que a compre
Ou esqueça meu nome
E se vá

Psychologist

Hoje você me doeu.
Cheguei e fui direto me sentar. O dia havia nascido cinza e agora, já pelas metades, começava a exibir um alaranjado degradé.
Sentada na minha frente, imponente, ela me olha com esse ar de quem me conhece por inteiro. Acende um cigarro pra soprar o tédio proposital pela janela e exibe uma cara de quem me espera desfiar rosários.
Sabe das minhas crises, da fobia pela qual eu esperneio, dos valores que não abro mão e do meu choramingar colo como menina mimada.
Ela me disseca, sentada do lado de lá da sala. Enquanto eu observo seu cabelo mal cuidado refletindo no laranja do sol. Me reescreve por partes, me documenta feridas e mexe onde eu não quero que doa.
Eu reclamo e ela diz que é preciso pra tratar o medo. Desisto. E reprimo em silêncio meu próprio pavor.Pensando que seria muito mais facil ter medo de escuro ou de baratas.
Malditos pássaros que não sabem voar!
Por conta deles, ela me aponta a vida crua, tão sobriamente real, tão cheia de casos e pessoas esquecidas atrás de lugares em mim que não deixo ninguém ver, e que ás vezes, nem eu vejo.
Só que hoje ela não vai saber de nada. Porque hoje você me doeu. E essa confusão é só minha. Você é (um problema) só meu.