segunda-feira, 27 de julho de 2009

Quem conta um conto.. [Parte II]

"Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem". [Caio Fernando Abreu]



... Fez as malas e saiu. Entrou num taxi e lá foi ela, embaixo ao sol preguiçoso de inverno, em busca de alguns dias repletos de prazer. Depois de uma noite inteira sem dormir, brigando com o relógio, Ana finalmente tinha percebido que o que queria era momentos bons. Que doesse depois - não se importava. Mas passariam milênios e ela ainda teria lembranças daquela viagem. O coração batia forte agora e a boca cada vez mais seca. Culpa de ter bebido tanto café de madrugada. Pensou por um instante se aquilo lhe faria mal durante o vôo, mas logo esqueceu. Conferiu os documentos, as passagens, a bagagem de mão. “OB, batom, perfume. Ok! Está tudo aqui.” Nesta altura tinha até esquecido do relógio, e resolveu conferir as horas. 10h35(!!). 10 e 35! Não podia ser tão tarde! O avião partiria nos próximos 10 minutos e ela não podia ficar pra trás!

Arregaçou as portas do aeroporto deixando cair amor por onde passava e desejando que por algum milagre conseguisse pegar aquele vôo. Chegou a cabine da companhia aérea apenas pra constatar o que no fundo ela já sabia: havia perdido o vôo. Fez tudo que pode. pediu que embarcasse com as malas no colo. "Prometo não incomodar ninguém!" Tentou trocar a hora da passagem, mas não havia nada que pudesse fazer. Já que estava ali, subiu os degraus e foi pra janela ver o avião decolar. E lá se foi todo o seu êxtase, toda a sua energia. Não estava conseguindo sentir nada. Um esboço de sentimento qualquer. Queria sentir. Queria espernear, chorar, arrancar os cabelos, mas não. Não sentiu nada. Absolutamente nada. Só a certeza de que se existe algo que possa dar errado, certamente DARÁ!

E assim, apática, foi arrastando suas malas e suas olheiras de volta pra casa, enquanto evitava encostar nas pessoas que passavam frenéticas ao seu lado. Entrou novamente no taxi. “De volta pra casa, por favor,”. “Que foi, a Madame esqueceu a passagem?”. Um sorrisinho amarelo foi tudo que conseguiu dar. Olhou para o lado de fora e se concentrou no percurso exato que tinha feito há poucos minutos atrás. O mesmo percurso que só imaginara fazer outra vez em quatro dias.

Chegou em casa, largou as malas num canto do quarto, arrancou os sapatos e colocou o cd da Billie Holiday pra tocar em volume máximo. Sua companheira de sempre. "You know that I love you / and what love induzes". Era incrível a capacidade que essas músicas tinham de lhe fazer sentir mais mulher, mais carne, mais pulso, mais vida, e com uma vontade intensa de beber uma garrafa inteira de vinho. Só as duas, Ana e Billie, bebendo vinho, rindo, sacudindo os quadris, fumando alguns cigarros, e chorando dores nostálgicas de amores perdidos. Só aquela voz, entendia tudo que se passava pela cabeça dela. Olhou para cama, onde tinha algumas roupas dobradas. "Tenho que guardar isso depois".

Ana só pensava em se deitar. E como a cama estava ocupada, contentou-se em colocar algumas almofadas sobre o tapete, a taça de vinho ao lado, e bastava. Deitou-se e tentou sentir alguma coisa, o que quer que fosse. Dor, mágoa, frustração, qualquer coisa. Estava tão apática que não conseguia sentir qualquer fragmento de sentimento. Algo que a fizesse se perceber. Mas não. Nada. Nem uma pontinha de sentimento. Só sentia mesmo aquela voz suave entrando pelos seus poros e lhe dando a sensação de sono. O estresse acorrentado ao corpo impunha uma vontade de desabafar, deitar, abraçar o travesseiro e ter uma noite Bukowiskiana cantada por Billie Holiday.

Os olhos estavam estáticos em um ponto qualquer do azulejo branco do chão. Tão estáticos quanto o celular. O maldito celular que a perturbara por ficar tantas noites mudo, agora, lhe fazia um favor por quietar-se. Não queria falar com ninguém, não queria explicar-se a ninguém. E mesmo assim, nem um barulho poderia atrapalhar o som ecoando pelo quarto junto ao cheiro forte do incenso que prometia "sexo, amor e aconchego", o que de fato lhe seria de extremo agrado, mas achou melhor apagar o incenso já aceso e usar um que vinha prometendo na caixa: "ajuda a vencer obstáculos". Seria esse então. Um blues com cheiro de obstáculos vencidos.
Só faltava uma única coisa: a torta de chocolate! Aquela mesma que ela havia negado por varias semanas no intuito de perder alguns quilos. Agora já não importava mais. Comeria aquela torta sem culpa e com vontade máxima de manchar aqueles malditos lençóis brancos - onde o menino gato se espreguiçava - com o chocolate que escorreria pelo garfo. Parou por alguns segundos e com a cabeça encostada no armário, já sentindo o efeito do vinho, Ana respirou fundo e constatou que a sua vida nunca teria tido sentido se não fosse o som daqueles pianos. "Me casaria com esses pianos se pudesse".

"Não se afobe não que nada é pra já..."Olhou pro lado tentando adivinhar de onde estaria vindo aquela música. Mas aquelas palavras lhe bateram com um peso tão grande que a busca foi esquecida. "Ô Chico, Chico, Chico, como pude esquecer de ti? Que me curou tantas vezes pronunciando essas breves palavras 'Não se afobe não que nada é pra já'". Só então, Ana viu o celular jogado na cama e percebeu que era ele que tocava. Não atendeu. Nem ao menos se importou em ver quem ligava. Ficou ali ouvindo as palavras milagrosas de Chico misturadas aos teclados bêbados do som de Billie. E de repente a apaticidade começou a evaporar. Já sentia cada nota das duas músicas que tocavam simultaneamente. Cada pedaço do seu corpo vibrava ao som do romance inédito entre Billie Holiday e Chico Buarque.

Olhar perdido. Chico calou-se - desistiram de ligar. Ana olhou mais uma vez para as roupas em cima da cama e depois para as malas no canto do quarto, e viu que só seus sonhos estiveram ali, naquelas malas, ela não. Ela ficara presa aos Chicos, às Billies, e a tantos outros que embalaram seus momentos mais difíceis e os mais românticos e patéticos também. Tinha ficado presa às melodias. Melodias que sempre vinham para lhe entregar algum tipo de sensação. E jogada no chão, perto do cinzeiro, tomou mais um gole - direto na garrafa e grande o suficiente para esvaziá-la -encolheu-se no travesseiro em cima do tapete, e sentiu falta de ter alguém com quem pudesse se enroscar. Acabou dormindo. Desejando que o dia seguinte lhe trouxesse um pouco de paz e, principalmente, a sensação de que o menino gato e seus lençóis brancos tivessem sido apenas um sonho. E nada mais."

[Continua..]

Um comentário:

james emanuel de albuquerque disse...

Grato pela visita.

Tudo de muito bom gosto por aqui.



Um abraço.