Acendeu um cigarro e pensou nas coisas que não lhe apetecia falar. Pensou no passado em comum, nos olhos pequenos e sorriso imponente que ela tem e nas invasões noturnas em seus sonhos. Mesmo não sendo mais dele, e ele não a amando mais, sabia que sua presença ainda ecoava pela casa - que nem sequer foi dela - a ponto de enlouquecê-lo. E num movimento brusco, de quem quer desviar o pensamento, vestiu a camisa amarrotada que estava apoiada na cadeira da sala e saiu na intenção de comprar algo que lhe agradasse o estomago.
Caminhou pelo bairro, enquanto a vizinhança o ignorava, e sentiu o tédio em meio à loucura urbana. Se aproximava do bar, aberto 24 horas, quando reparou na mulher de longos cabelos negros e pele absurdamente pálida parada na calçada. Continuou sério a fita-la. Chegou mais perto, sentindo as pupilas dilatarem. Perguntou as horas. A mulher inclinou o corpo um pouco pra trás pra olhar o relógio, e disse sem muita cerimônia: São duas e vinte sete. Ele, em um movimento com a cabeça, muito formal, agradeceu e entrou.
Depois de comer, passou os olhos pela rua esperando ve-la mais uma vez. Mas não a encontrou.
Voltou pra casa. E sem muita demora percebeu as pestanas dos olhos cederem. Deitado, sentiu alguém repousar suavemente a mão sobre seu peito. Girou o corpo lentamente, e pode observar as curvas alvas e expostas da mulher deitada ao seu lado. Dona de longos cabelos negros, ela vestia apenas um relógio no pulso esquerdo. Nada mais. Estava completamente despida, mas tinha o lençol enrolado entre as pernas. Subiu o olhar até encontrar um rosto alongado de traços marcantes que exibia um par de olhos amendoados, extremamente vivos e acordados. Sentiu suas pupilas voltarem a se dilatar. E a boca seca que a saliva resistia em umedecer.
Ela estava ali.
Ana estava ali.
Mesmo ela não sendo mais dele, e ele não a amando mais. Mas estava ali. Num sonho estranho. O unico que ainda lhe garantia alguma paz.